CRIME ORGANIZADO

A vida dupla do empresário fã de polo que era 'um dos maiores traficantes do mundo'

Muhammed Asif Hafeez foi condenado nos Estados Unidos por produção e tráfico de drogas. A BBC investigou a história de Hafeez, conhecido como "Sultão" – um aparente empresário de sucesso, com o à mais alta elite britânica que, na verdade, era um dos maiores traficantes de drogas do planeta.

Hafeez foi embaixador do prestigiado Ham Polo Club de Londres. Nestas fotos de 2009, ele aparece com sua esposa, abraçando o príncipe Harry e conversando com o príncipe William, do Reino Unido. -  (crédito: Mark Greenwood)
Hafeez foi embaixador do prestigiado Ham Polo Club de Londres. Nestas fotos de 2009, ele aparece com sua esposa, abraçando o príncipe Harry e conversando com o príncipe William, do Reino Unido. - (crédito: Mark Greenwood)

Aparentemente, Muhammed Asif Hafeez era um indivíduo notável.

Homem de negócios global e embaixador de um clube de polo londrino de prestígio, ele se relacionava com a elite britânica, incluindo membros da Família Real.

Hafeez também reava regularmente, às autoridades do Reino Unido e do Oriente Médio, informações detalhadas que, em alguns casos, levaram à interceptação de imensos lotes de drogas.

Ele afirmava ser motivado apenas pelo que considerava sua "obrigação moral de refrear e evidenciar atividades criminosas".

Pelo menos, é isso o que as pessoas pensavam a seu respeito. Mas, na verdade, autoridades americanas descreveram Hafeez como "um dos mais ativos traficantes de drogas do mundo".

Da sua residência no Reino Unido, ele manipulava um vasto império das drogas, fornecendo toneladas de heroína, metanfetamina e haxixe de bases no Paquistão e na Índia, para distribuição em todo o mundo.

As gangues que ele delatava eram seus concorrentes. Sua motivação era livrar o mercado dos seus rivais.

Sua posição no submundo lhe valeu o título de "o Sultão". Mas seu prestígio e seu poderio criminal não durariam para sempre.

Uma complexa operação conjunta entre autoridades britânicas e americanas levou à extradição de Hafeez do Reino Unido em 2023. Ele se declarou culpado em novembro do ano ado.

Na sexta-feira (6/6), Hafeez foi condenado a 16 anos de prisão em Nova York, nos Estados Unidos, por formação de quadrilha para exportar drogas para os EUA, incluindo uma quantidade de heroína suficiente para produzir "milhões de doses".

Como ele se encontra em custódia desde 2017, a sentença de Hafeez irá terminar em 2033.

A BBC acompanhou o caso de perto. Reunimos informações dos documentos do processo, registros de empresas e entrevistamos pessoas conhecidas de Hafeez.

Nossa intenção foi descobrir como ele conseguiu ar despercebido por tanto tempo – e como, finalmente, ele foi preso.

Hafeez e sua esposa em duas fotos, uma com o príncipe Harry e outra com o príncipe William, do Reino Unido
Mark Greenwood
Hafeez foi embaixador do prestigiado Ham Polo Club de Londres. Nestas fotos de 2009, ele aparece com sua esposa, abraçando o príncipe Harry e conversando com o príncipe William, do Reino Unido.

Hafeez nasceu em setembro de 1958, em uma família de classe média de Lahore, no Paquistão. Ele era um dentre seis irmãos e foi criado em condições de conforto.

Moradores de Lahore que conheceram a família contaram à BBC que seu pai era dono de uma fábrica perto da cidade. Hafeez também declarou à Justiça americana que recebeu treinamento como piloto comercial.

Do início dos anos 1990 até meados dos anos 2010, ele dirigiu uma empresa holding aparentemente legítima, chamada Sarwani International Corporation. Ela possuía subsidiárias no Reino Unido, no Paquistão e nos Emirados Árabes Unidos.

Seu website (hoje, indisponível) indicava que a companhia vendia equipamentos técnicos para exércitos, governos e forças policiais em todo o mundo, incluindo aparelhos de detecção de drogas.

Entre as outras companhias englobadas pela holding, havia uma empresa de tecidos registrada em diversos países, um restaurante italiano em Lahore que era franquia de uma conhecida marca londrina e uma empresa chamada Tipmoor, localizada a oeste de Londres, especializada em "serviços equestres e polo".

Estas empresas ofereciam a ele um estilo de vida luxuoso, além de garantir seu o aos mais exclusivos círculos britânicos.

Hafeez foi inscrito como embaixador internacional do prestigiado Ham Polo Club de Londres por pelo menos três anos, de 2009 a 2011. Ele e sua esposa Shahina foram fotografados no clube em 2009, conversando com o príncipe William e abraçando o príncipe Harry, do Reino Unido.

O Ham Polo Club declarou à BBC que Hafeez nunca foi membro do clube, que a associação não mantém mais "embaixadores" e que sua atual diretoria "não tem nenhuma ligação com ele".

O clube destacou ainda que o evento no qual Hafeez e sua esposa foram fotografados encontrando os príncipes britânicos "foi organizado por terceiros".

Os diversos braços globais da Sarwani foram dissolvidos em várias etapas nos anos 2010, segundo seus registros na Companies House britânica e em registros internacionais equivalentes.

'Algo suspeito está acontecendo'

Um ex-funcionário da Sarwani nos Emirados Árabes Unidos contou à BBC ter suspeitado que havia "algo suspeito acontecendo" na época em que trabalhava na empresa. O motivo é que mesmo os projetos grandes "só eram pagos em dinheiro".

O ex-funcionário pediu para não ser identificado, por medo de represálias. Ele declarou que acabou saindo da empresa por ter ficado desconfortável com esta situação.

"Não havia transações [bancárias], nem registros, nem existência", disse ele à BBC.

Hafeez também escrevia cartas periodicamente para as autoridades dos Emirados e do Reino Unido, informando sobre cartéis rivais, sob o pretexto de ser um cidadão preocupado.

Carta da Embaixada britânica em Dubai, nos Emirados Árabes, agradecendo a Hafeez pelo seu auxílio, que resultou na apreensão de um grande lote de drogas
BBC

A BBC teve o a essas cartas, bem como às respostas da Embaixada britânica em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, e do Ministério do Interior britânico, expressando seu agradecimento e reconhecimento pelo contato.

O Ministério do Interior britânico declarou à BBC que não faz comentários sobre correspondências individuais. Já o Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido e o governo de Dubai não responderam aos pedidos de comentários enviados pela BBC.

Carta do Ministério do Interior do Reino Unido, agradecendo pela atenção prestada por Hafeez
BBC

Familiares de Hafeez encaminharam as cartas à BBC em 2018, quando ele estava envolvido em uma longa disputa judicial para tentar evitar sua extradição para os Estados Unidos.

Eles também apresentaram a correspondência à Justiça britânica e, posteriormente, ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), como evidência de que ele havia sido um informante e precisava de proteção.

Todos os tribunais discordaram e concluíram que esta era uma manobra de Hafeez para retirar seus concorrentes do mercado.

O TEDH declarou que Hafeez era "alguém que havia trazido para a atenção das autoridades a conduta criminosa de terceiros conhecidos por ele como possíveis ou reais concorrentes da sua vasta empreitada criminosa".

Carta de Hafeez para o governo de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, informando sobre a atividade criminosa de grupos suspeitos
BBC

Enquanto Hafeez escrevia estas cartas, teve lugar em 2014 uma reunião à qual ele não esteve presente, mas que levaria à sua derrocada.

Dois dos associados próximos de Hafeez se reuniram com um potencial comprador da Colômbia em um apartamento em Mombasa, no Quênia.

Eles queimaram uma pequena quantidade de heroína, para demonstrar sua pureza. E disseram que poderiam fornecer a ele qualquer quantidade de "cristal branco... 100%".

O fornecedor dessa heroína de alta qualidade, segundo eles disseram ao comprador, era um homem do Paquistão conhecido como "o Sultão" – ou seja, Hafeez.

Os associados de Hafeez logo descobririam que o "comprador" colombiano, na verdade, trabalhava disfarçado para a istração de Repressão às Drogas dos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês).

Toda a reunião foi parte de uma elaborada operação que foi secretamente filmada. A BBC teve o a esta filmagem.

A extradição e o desfecho

Os documentos do processo nos Estados Unidos revelam que o acordo foi coordenado pelos irmãos Baktash e Ibrahim Akasha, que dirigiam um violento cartel no Quênia.

O pai da dupla foi um temido líder do narcotráfico, morto no Distrito da Luz Vermelha de Amsterdã, na Holanda, no ano 2000.

O acordo também envolveu o cidadão indiano Vijaygiri "Vicky" Goswami, que istrava as operações dos Akashas.

Em outubro de 2014, Goswami, Hafeez e os irmãos Akasha ainda não tinham conhecimento de quem eram realmente os compradores, quando 99 kg de heroína e 2 kg de metanfetamina foram despachados para os falsos traficantes colombianos.

Os irmãos Akasha prometeram fornecer outras centenas de quilos de cada uma das drogas.

Um mês depois, Goswami e os irmãos Akasha foram presos em Mombasa. Eles foram libertados sob fiança pouco depois e aram dois anos tentando evitar sua extradição para os Estados Unidos.

Paralelamente, autoridades americanas e britânicas trabalhavam em conjunto para montar seu processo contra Hafeez. Eles utilizaram, em parte, evidências recolhidas dos aparelhos confiscados durante a prisão de Goswami e dos irmãos Akasha.

Nesses aparelhos, eles encontraram inúmeras referências a Hafeez como importante fornecedor e conseguiram encontrar evidências suficientes para identificá-lo como "o Sultão".

As acusações apresentadas nos Estados Unidos não impediram que um dos homens, Goswami, desse continuidade às suas empreitadas ilegais.

Em 2015, quando estava sob fiança no Quênia, ele elaborou com Hafeez um plano para transportar diversas toneladas de uma droga chamada efedrina de uma fábrica de produtos químicos em Solapur, na Índia, para Moçambique.

Efedrina é um medicamento poderoso de uso legal em quantidades limitadas, mas é empregado na fabricação de metanfetamina.

Os documentos do processo americano mostram que Goswami e Hafeez planejaram montar uma fábrica de metanfetamina na capital moçambicana, Maputo. Mas eles abandonaram o esquema em 2016, quando a polícia invadiu a fábrica em Solapur e confiscou 18 toneladas de efedrina.

Goswami e os irmãos Akasha foram finalmente extraditados para julgamento nos Estados Unidos em janeiro de 2017.

Hafeez foi preso oito meses depois, no seu apartamento no próspero bairro de St. John's Wood, em Londres.

Ele foi detido na prisão de alta segurança Belmarsh, no sudeste da capital britânica. Lá, ele ou seis anos, tentando impedir sua extradição para os Estados Unidos.

Mas o caso sofreu uma grande reviravolta em 2019. Goswami se declarou culpado à Justiça americana e contou a um tribunal de Nova York que havia concordado em cooperar com os promotores.

Os irmãos Akasha também se declararam culpados. Baktash Akasha foi condenado a 25 anos de prisão e seu irmão Ibrahim, a 23 anos.

Goswami ainda aguarda sua sentença. Ele teria testemunhado contra Hafeez nos Estados Unidos, se o caso tivesse ido a julgamento.

Na prisão de Belmarsh, Hafeez estava ficando sem alternativas.

Ele tentou impedir sua extradição para os Estados Unidos, mas não conseguiu convencer os magistrados, a Alta Corte de Justiça de Londres e o TEDH de que havia, de fato, sido informante das autoridades "em risco de maus tratos pelos seus colegas de prisão".

Ele também alegou que as condições nas prisões americanas seriam "desumanas e degradantes" para ele, devido às suas condições de saúde, que incluem asma e diabetes tipo 2.

Hafeez perdeu todos estes argumentos em cada etapa do processo. Ele foi extraditado em maio de 2023.

Mas seu caso não foi a julgamento. Em novembro do ano ado, Hafeez se declarou culpado de duas acusações de formação de quadrilha para fabricar e distribuir heroína, metanfetamina e haxixe e exportar as drogas para os Estados Unidos.

Antes da sentença, os promotores descreveram as "condições extremamente privilegiadas" da vida de Hafeez, que "lançam profunda atenção à sua decisão de conspirar... e lucrar com a distribuição de substâncias perigosas que destroem vidas e comunidades inteiras".

"Ao contrário de muitos traficantes, cujas atividades com drogas, ao menos em parte, advêm de desespero, pobreza e falta de oportunidades educacionais, o réu viveu uma vida repleta de privilégios e escolhas", afirmam os promotores.

BBC
Sajid Iqbal e Ashitha Nagesh - BBC News
postado em 12/06/2025 07:44 / atualizado em 12/06/2025 09:10
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